“Meu pai é simples – fala pouco / e pouco escreve. / Ele, quando toca, me toca. // É um anjo, meu pai”. Assim conceituei meu velho Israel de Aquino Alves, o intervalo entre mim e meu xará mais próximo – o Vô Luiz de Aquino Alves. Israel; Rael, Raé, Tii Rael... Apelidos carinhosos nas corruptelas de um nome!
“Meu pai tem mãos de amaciar violão”, escrevi um dia, há quase vinte anos. Não sei quantas vezes memorei os versos desse poeminha, que abriu meu livro Razões da Semente, no século passado. Curiosamente, citei pessoas que, para mim, marcam bem a época de concepção daqueles versos: 1993. Mas somente neste 17 de novembro de 2011, três dias após a última despedida, dei-me conta de que sempre conheci meu pai pela habilidade de sua mão esquerda a pontuar as cordas no braço trastejado e festejar o som com a destra.
Meu pai, sua mão e violão. O pinho, como metaforicamente poetizam os boêmios das madrugadas, em bares aconchegantes ou em inesquecíveis serenatas ante janelas sagradas de musas angélicas – ou fogosas raparigas de carícias e desejos. O violão, para mim, teve sempre a sacralidade de um templo e o poder mágico de despertar alegrias, amores, poemas – uma contínua felicidade! Não foi em vão que Cartola referiu-se a ele como “bojo perfeito”, em sua imortal “Cordas de aço”.
Em minha memória, a primeira serenata tem lugar de honra, na mesma distinção do primeiro beijo. Aquela serenata, imagino que nos primeiros meses de 1950, teve o violão de meu pai, o sax de Zé Pinto e a minha voz muito infantil; afinal, eu tinha apenas quatro anos. A calça curta, a camisa azul, os cotovelos grudados no corpo, as mãos postadas sobre os lábios, defendendo-me de um friozinho persistente, as ruas de Caldas Novas iluminadas precariamente por lâmpadas comuns, incandescentes, nos postes de aroeira...
Ao voltarmos, minha mãe nos esperava com um lanche oportuno; constatei depois que era a rotina – meu pai esticando canções pelas janelas amigas e minha mãe a esperá-lo. Ele vinha sempre com alguns companheiros e minha mãe lhes servia muitas vezes bolos e quitandas, ou mesmo um providencial jantar que determinava a tocata madrugada adentro, até que o sol determinasse o fim da farra.
Separamo-nos quando dos meus dez anos; fui viver longe, estudar, adolescer, mudar a pele e a voz, criar ideias novas, novos hábitos – mas jamais perdi o gosto pelos tons de violões, o apego àquelas saudosas valsas e canções... E uni a elas a nascente bossa-nova, depois a MPB das décadas de 1970 e 80. A esse tempo, aprendi a acasalar, num processamento para mim dos mais felizes, o prazer da música com a alegria dos textos.
Minha mãe, Dona Lilita, musa dele e minha mestra, foi-se antes, em 2004. Tinha 80 anos. Meu velho pai guerreiro atingiu a marca de 89 anos, lúcido e bem-humorado. Há poucas semanas, no aniversário de uma amiga – Edith Ala – resistiu ao chamado para ir embora; queria invadir a madrugada, tirando acordes ao violão, como sempre...
“Dedos ágeis esses teus, meu pai. / Trazem sons que lembram cores / em manhãs de flor e sol, às vezes”. É outro poema, ainda mais antigo... Que continua assim:
“Olha, meu Pai, eu não preciso / um mero domingo em agosto / para te falar de coisas simples / cristalinas e fáceis / (como este sempre envaidecer por ser teu filho)”. E termina com um apelo:
– Toca outra valsa, meu Pai!
Texto de autoria de Luiz de Aquino Alves Neto, escrito em homenagem ao seu pai e publicado no blog http://penapoesiaporluizdeaquino.blogspot.com/
Espero que esses grandes artista pirenopolinos que desaparecem sejam substituídos à altura pelas gerações futuras.
ResponderExcluirQue texto lindo, bem escrito, o amor de um filho a um pai ausente. Poesia pura.
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