Era uma manhã comum de sábado. E
era abril, em 1978. Desde alguns meses antes, eu tinha montado, com o
sonho e a esperança de publicar, o que sabia ser o meu primeiro livro –
um livrinho de contos. E eram os anos do governo do general Geysel, o
que falava em distensão gradual e lenta...
Pois era
manhã, possivelmente dez horas, quando chegamos à casa de Dona Geny, no
Largo do Rosário (Pirenópolis), Luiz Antônio Godinho e eu. Batemos à
porta, Esdras nos atendeu e abriu a porta, tal como sempre nos abria o
sorriso e o coração de boa amiga. Dissemos que queríamos visitar José
Veiga e ele surgiu, silencioso e tímido. Luiz Antônio cuidou de nos
apresentar.
Intimidei-me também ante a timidez do
famoso contista. E falei com cuidado que a ousadia de invadir sua paz
naquela manhã de sol e azul tinha a ver com o meu propósito de fazer um
livro...
– Ah! Você também é escritor? – perguntou-me em tom de surpresa enquanto, num breve salto, punha-se de pé e nos deixava.
Olhei
para Esdras e Luiz Antônio, nenhum de nós entendeu... E eis que volta
José Veiga, trazendo nas mãos dois livros e uma caneta. A mim ofertou
Cavalinhos de Platiplanto e ao Luiz Antônio, Sombra de Reis Barbudos. E
abriu-se de falas, motivando-me a providenciar logo a publicação dos
meus contos.
Ele era assim. Tímido em princípio, mas
capaz de quebrar o gelo ao primeiro sinal de afinidade. Cheio de bons
conselhos – mas não era fácil arrancar isso dele, não... E cheio de
ótimas histórias vividas, que ele só contava quando se sentia à vontade
com o parceiro de conversa.
Foi nesse quadro e nesse
clima que contou-me, dentre outras coisas, de quando viajava de Goiás (a
velha capital) para Leopoldo de Bulhões, onde pegou o trem para o Rio
de Janeiro e, ao longe, erguia-se uma nuvem de poeira – o pó vermelho
que, anos depois, daria nome ao romance de Eli Brasiliense (o primeiro
romance ambientado em Goiânia).
– Ali vai ser a nova
capital – disse-lhe o chofer do automóvel especialmente contratado para
conduzi-lo à “ponta da linha”, que era a estação de Leopoldo de Bulhões,
em 1935. Sob esse mesmo humor, contava-me de um figurão nos governos
de Pedro Ludovico. O funcionário, digno e cônscio, exemplar cidadão e
pai de família, morador na Rua 16, no centro de Goiânia, fora dos
primeiros a adquirir um automóvel, lá pelos anos 40 ou 50. Acordava cedo
e começava a se arrumar, enquanto a mulher lhe preparava o café a ser
tomado com os filhos que seguiriam para as escolas. E tinha sempre tempo
para ir à garagem, pegar o espanador colorido que ficava dependurado
sob o espelho retrovisor interno, remover toda a poeira da pintura
escura do Mercury (ou Buick, ou outro modelo) e, após o café, seguir a
pé para a repartição.
Veiga gostava também de lembrar
os tempos de Londres, os passeios a pé, em ônibus ou trem pela cidade e
pelas cercanias. E gostava de metrô, no Rio – morava bem perto de uma
estação, na Glória. De seu apartamento, no último andar de um antigo
edifício na Praça Paris, desfrutava de uma das mais belas paisagens do
Rio, com a Marina da Glória, o Monumento aos Pracinhas, o Aeroporto
Santos Dumont e, ao fundo, Niterói, além da barra da Guanabara. Numa de
minhas últimas visitas a ele, vislumbrei aquela vista e comentei, com
euforia, a delícia que era morar ali. Ao seu modo brincalhão e
provocador, sintetizou:
– O apartamento ao lado está vazio.
Nesta segunda-feira, dia 2 de fevereiro, José J. Veiga completa 100 anos de vida e imortalidade.
Acadêmico Luiz de Aquino