"Pirenópolis, terra mãe de Anápolis, possuía um vasto e rico território, envolvendo todo o nosso município. As suas fronteiras chegavam pertinho de Campinas, abrangendo toda a margem esquerda do Rio Meia Ponte, que lhe emprestava o nome no passado.
Foi uma célula muito importante na vida de Goiás. Mas, desde quando conheci a vetusta cidade, há mais de sete décadas, ela não mudou muito. O casario, tipo colonial, na parte central, as igrejas, a rua Direita e a rua do Rosário conservam-se como dantes.
Quando lá fui, pela primeira vez assistir as solenidades da festa do Divino Espírito Santo, fiquei meio atordoado com o foguetório, com os cavaleiros mascarados, galopando pelas ruas, aos sons das batidas fortes da zabumbas e com o apego à tradição das cavalhadas, das pastorinhas. O tiroteio das baterias de ronqueiras e os estrondos dos rojões espantaram-me. Tudo, tão antigo, para mim foi coisa nova. Foram marcantes a surpresa e o divertimento.
E o jeito de falar do povo dali, então, era ligeiro, apressado no pronunciar as palavras, encurtando as sílabas. Faziam-me parar e pensar, procurando entender. Parecia estar vivendo uma época tão distante, perdido no tempo. Era comum o dito alusiva à boa terra, “Prinopislá”, contrastando com a vizinha cidade, Corumbá, em sua maioria habitada pelas famílias Fleury e Curado, onde era corriqueira a menção: “Corumbá de nóis”.
Hoje as coisas por lá estão mudadas. O falar do seu povo, mercê do fluxo turista que invade a cidade, a ida de seus filhos para buscarem instruções e formação superior em outros lugares e também o desaparecimento dos mais antigos têm contribuído para a modificação que hoje se observa na maneira de se expressar dos legítimos pirenopolinos.
A cidade tem muitas histórias. Gente importante, vultos notáveis da vida sociopolítica de Goiás saíram de lá. O progresso já bafeja o lugar e já estão aparecendo prédios novos e ricas mansões, rodeando o velho e histórico casario, com mostragens do modernismo.
E o que agora se vê são os antigos casarões, germinados, adaptados, com reformas, para servirem como abrigo de visitantes, com pomposos nomes de pousadas.
No longínquo 26 de janeiro de 1944, chegaram a Pirenópolis três sacerdotes franciscanos, integrantes do grupo de 14, que vieram compor a missão de São Francisco de Assis, no Brasil Central, procedentes dos Estados Unidos.
Com formação religiosa avançada, o contraste lodo se estabeleceu. Enquanto os frades procuravam pregar o Evangelho de Cris, conforme a sua evolução cultural, os seus paroquianos se apegavam aos rituais da tradição mundana, misturando tudo com as celebrações folclóricas a ponto de provocarem choques no setor missionário.
Houve alguns atritos com graduados chefes antigos, que não abdicavam do ritual externo, tão pomposo, do festeiro, da festeira, do imperador e das comemorações paralelas, que pouco tinha a ver com a religião anunciada pelos ditames da evolução evangélica dos franciscanos. Erra resistência provocou a saída dos frades de Pirenópolis e se espalharam por muitas outras cidade de Goiás.
Desde que eles chegaram em Anápolis e adquiriram o acervo da Paróquia de Santana e o primeiro ginásio que funcionava sobe os auspícios da Cúria, fui convocado a lecionar. Foi um tempo feliz, onde pude consolidar a minha formação moral e cultural e ganhar um punhado de amigos, que passaram a ser meus irmãos.
Um dia, inesperadamente, tive a notícia de que o meu grande amigo Frei Celson Hayes estava enfermo. Fui visitá-lo no Hospital Evangélico Goiano, ali internado. Foi uma surpresa, sim, porque ele era esportista e possuía uma excelente saúde.
Encontrei-o acamado, vermelho como brasa, muito irritado, fora do comum, parecendo atacado de sarna brava ou de fogo selvagem.
Perguntei-lhe se sabia a causa do mal que o afligia, e ele me respondeu, sorrindo:
─ É consequência de Pirenópolis. Apanhei uns bichinho chamados carrapatos, que pregaram no meu corpo, provocaram muito irritação e coceira... e aí está o resultado. Mostrou o braço vermelho e inchado.
De fato, certa noite o abençoado sacerdote fora procurado por alguém para socorrer uma pessoa que estava passando muito mal, à beira da morte. Levando o Sacramento, de batina, o boníssimo franciscano caminhou até a casa do doente, situada numa chácara, nos subúrbios da cidade, onde ministrou a extrema-unção.
Ao regressar, não mais dormiu. Uma coceira contínua e irritante, vindo das pernas, foi se propagando pelo corpo todo, a ponto de atordoá-lo. Começou a sentir febre, pois ficou deveras agitado. Pegou o jipe e veio para Anápolis, sofrendo com o frio e com a poeira. Foi medicado e internado de imediato.
Ao passar pelos trieiros, em meio às vassouras, ramos e carrapichos, foi colhendo bolas de carrapatinhos, que se espalharam por toda a roupa, passando para a pele. Daí o castigo.
Muito tempo depois, em reunião festiva no Colégio São Francisco, quando se comemorava o cinquentenário da chegada dos franciscanos ao Brasil, lá estava o meu amigo Frei Celso e alguém o inquiriu: (…)
─ Exite, por acaso, alguma coisa que o senhor não gosta, em nosso País?
─ Sim!... Duas.
Rápido, zombeteiro, respondeu:
─ Pirenópolis e carrapatos."
Crônica do escritor João Asmar, publicada no Diário da Manhã do dia 10.3.2012, Caderno Opinião Pública, página 7.