Estava uma noite até
bonita. Teve inauguração de obra pública no Alto da Lapa, e
algumas tímidas estrelas cintilavam entre nuvens. Mas de repente o
céu se fechou num semblante amarrado, começou a assoprar um vento
forte e não tardou para que os primeiros pingos caíssem, grossos e
fortes, por sobre a histórica Pirenópolis. Era a madrugada de 27 de
janeiro de 2016, uma data que dificilmente será esquecida.
O aguaceiro cerrado
durou cerca de três horas e foi suficiente para encher o Rio das
Almas, que já estava bem encorpado de véspera, e fazê-lo abandonar
o fluxo normal para se espalhar pelas ruas das proximidades, invadir
os quintais das casas e levar criações, derrubar muros, danificar
uma pousada e o comércio local, todos na parte baixa da cidade.
Foram momentos de muito terror e apreensão, com fortes trovões e
relâmpagos.
Fazia tempo que o Rio
das Almas não tinha uma cheia desse porte. Logo ele, sempre tão
comportado, a farfalhar poético debaixo da Ponte do Carmo para
deleite dos banhistas. Mas o que mais impressionou foi o estrago
provocado pelos Córregos Lava-pés e Pratinha. Eu nunca tinha ouvido
falar de cheia tão avultadas deles. Quando muito, o Lava-pés, que
corta a rua Direita quase na subida da Lapa, invadia alguns quintais
e causava estragos de pequena monta. Desta vez ele levou até carro.
Fato é que,
historicamente, os dois córregos sofreram agressões violentas
durante a ocupação urbana da antiga Meia Ponte. Suas margens foram
invadidas por construções e até a mata ciliar desapareceu. O
Pratinha foi “domesticado” num leito de concreto até desaguar no
rio das Almas. Há alguns anos falaram inclusive num projeto para
tapá-lo por completo e em cima construir uma extensão da Rua do
Lazer. Ainda bem que não fizeram isso.
Depois que a água
baixou é que foi possível ver a extensão dos estragos. Uma pousada
e várias lojas que funcionam num casarão histórico na parte mais
baixa do Rua do Rosário foram arrasadas e o muro derrubado. Rodou
também a bucólica ponte de pedestres na Rua da Prata. Sem contar
uma casa totalmente destruída e os carros que deram perda total. Uma
motorista conseguiu sair do veículo antes que ele fosse levado e
ficou agarrada numa árvore à espera de socorro.
Foi um duro golpe para
Pirenópolis, cidade que recebe centenas de turistas todo final de
semana e há pouco anunciou oficialmente mais uma edição do seu
carnaval à moda antiga. Por isso a Prefeitura Municipal começou a
agir rápido para limpar as ruas e refazer o calçamento de pedras
danificado. Representantes da Organização das Voluntárias de Goiás
(OVG) estiveram logo que amanheceu na cidade e prestaram
solidariedade aos pirenopolinos, entregando ao prefeito Nivaldo Melo
um Cheque Reforma para ajudar no custeio da reconstrução da área
atingida.
Embora a população de
Pirenópolis esteja assustada no momento, o que é natural, esse
revés não será suficiente para abalar seu espírito de luta e a
capacidade de superar desafios. Recentemente, ela foi capaz de
reerguer a Igreja Matriz de Senhora do Rosário das cinzas e hoje o
templo está lá, altivo e belo no centro histórico. Em épocas mais
antigas, o povo dos Pireneus sobreviveu a ataques de índios, guerras
sangrentas entre garimpeiros, repressões políticas e militares. Por
fim, insatisfeito com o fato de o Rio das Almas se tornar lama,
destruiu o garimpo das Lavras do Abade, expulsando o francês Bernard
Amblard D´Arena.
Uma gente que conseguiu
superar tanto aspecto negativo de sua história e ainda preservar
cultura e patrimônio vai tirar de letra essa enchente. Só não
podemos esquecer da natureza e da luta perene para preservar cada vez
mais a riqueza da água.
Adriano Curado
Artigo publicado no jornal Diário da Manhã do dia 30/01/2016, Caderno Opinião Pública, p. 5.
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