terça-feira, 2 de agosto de 2016

Sebastiana não quis partir

Sebastiana nasceu escrava da senzala do comendador. Quando ele morreu, entre seus bens semoventes estava lá a declaração de que possuía a escrava. Sua mãe se chamava Zulmira e era uma serva de lidas domésticas. Trabalhava como cozinheira, faxineira, camareira etc. E por conta desse seu trabalho, Sebastiana cresceu dentro da casa-grande, entremeio aos filhos do comendador. Zulmira foi até ama de leite de um deles, o Frederico, que mais tarde herdaria os bens do pai.

Estamos no princípio de 1870, já nos acordes finais da Guerra do Paraguai, mas o conflito foi o suficiente para matar dois dos três filhos do comendador. Pouco tempo depois o velho morreu de desgosto e Frederico se tornou senhor absoluto da fazenda. Sua mãe era uma mulher muito boa chamada Agripina, e quando o esposo faleceu ela se mudou para a rua. Nunca mais voltou à fazenda. Levou consigo as escravas Zulmira e Sebastiana para cuidar do casarão.

Dona agripina viveu bastante, quase noventa anos, mas nos acordes finais da existência estava bastante senil. O filho aparecia de vez em quando, recomendava cuidados especiais com a mãe, acertava a conta com o boticário e retornava para a fazenda.

Na entrada da década de 1880 faleceu Zulmira. Sebastiana então ficou sozinha no trato com a senhora doida e na administração da casa. Durou oito anos essa peleja, até que, certo dia, os sinos das igrejas amanheceram festivamente sonoros. Ninguém entendia a princípio o que se passava, mas logo a notícia correu. Estava abolida a escravidão.

Sem o esforço gratuito dos seus servos, Frederico foi forçado a vender a fazenda e a se mudar para a cidade. Ao chegar, encontrou Sebastiana a dar carinhosamente comida na boca de Agripina.

― Que é que você faz aqui? Não soube que todos agora estão livres?
― Soube sim, seu Frederico.
― Então por que não se foi ainda?

Sebastiana pensou por um tempo, olhou para a idosa que aguardava ansiosa a colherada de sopa e respondeu:

― Não quero partir. Estou já velha, não tenho para onde ir. E gosto daqui. Se o senhor concordar, eu fico aqui na casa.

Frederico concordou. Sua mãe morreu cinco anos depois. Ficaram os dois, ele e a velha Sebastiana, no casarão que ninguém visitava. Solitário e arredio, não casou e nem teve filhos esse Frederico. E quando a gripe espanhola o atingiu em 1920, antes de morrer doou a casa à escrava.

Sebastiana morreu com 109 anos de idade, bem lúcida e alegre. Gostava de ficar debruçada sobre o parapeito da janela e contava histórias da escravidão aos que passavam. Ela não tinha herdeiros, então a municipalidade ficou com a casa velha, que ruiu com o tempo e no lugar construíram uma escola.

Só decidi relembrar essa história porque Sebastiana não quis partir.

Adriano Curado

Um comentário:

  1. Lindo, Adriano! Uma bela história, contada com carinho e sabedoria. Faça uma visita ao meu blog (http://mg-perez.blogspot.com.br/). Será um prazer recebê-lo. Um abraço e um lindo dia!

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