"Cidade
de 1727, banhada pelo famoso Rio das Almas. Lá existem todos os
vestígios do que era uma boa cidade colonial. As quatro igrejas - uma
delas, a do Rosário, foi demolida -, os prédios antiquíssimos, o
calçamento de pedras. Tudo nos transporta a um passado
longínquo. Mas o que mais chama a atenção em Meia Ponte é a riqueza da
Matriz! Excelente arquitetura colonial; altares com entalhes barrocos;
imagens preciosas. E as pratarias? Arrobas de prata setecentista!
Meu
saudoso amigo, Prof. Jarbas Jaime diz, numa de suas magníficas obras
que as pratarias da Matriz foram doação do grande homem de Meia Ponte, o
fundador da imprensa goiana, Comendador Joaquim Alves de Oliveira. É
provável que haja um equívoco. Jarbas Jaime, pesquisador como era, pode
ter encontrado e transcrito alguma outra doação, provavelmente não
referente às pratarias da Matriz. Impossível não seria; seria
improvável. Toda aquela prataria é do século XVIII, e o comendador só
nasceu no fim desse século. As pratas da Matriz são das épocas e dos
estilos de D. João V e D. José, precedendo, de cinquenta anos, o
nascimento do grande homem. Do tempo do comendador vi apenas uma naveta,
mal feita, de inscrição pobre. Talvez houvesse Alves de Oliveira doado
outras peças de prata que, por não serem essenciais ao culto, foram
passadas a igrejas menos importantes.
Pirenópolis
– cidade dos Pireneus – passou a assim chamar-se pela proximidade da
serra de mesmo nome, com 1380 metros de altitude.
Conheci
em Pirenópolis outro comendador, sogro do Dr. Wilson Pompêo de Pina,
honesto homem que muito trabalhou em benefício das igrejas locais. A
menina dos seus olhos era a capelo no alto dos Pireneus, onde todos os
anos a tradição revive grande romaria. Dele comprei diversas peças da
antiga Igreja do Rosário, destinando o produto da venda à ajuda na
construção de um ginásio, obra em que, com zelo e dedicação, se esmerou.
Da
primeira vez que fui a Pirenópolis, travei conhecimento com Dr. Sá,
juiz da comarca que tentava vender uma fazenda nas bordas da cidade.
Consegui que ele a alienasse ao Senhor Natan, joalheiro de São Paulo.
Nasceu entre nós uma certa afinidade, e quase todas as noites nos
reuníamos na residência do Prof. Jarbas, que fora chefe da Segurança
Pública do governo Pedro Ludovico.
Pirenópolis
estava repleta dos mais belos móveis coloniais que já vi. O palácio de
Joaquim Alves de Oliveira fora demolido em 1868. Era enorme.
Saint-Hilaire o descreve e ao engenho São Joaquim como
propriedades-modelo, afirmando ser o comendador o homem mais rico do
Brasil Central. Permanecem na cidade todos os móveis de seu palácio.
Belíssima
peça do comendador, vendi-a ao grande colecionador Sr. Hélio de Almeida
Leite: estante para livros “D. João V”. Muitas outras residências ricas
também existiram e algumas ainda existem. Lembro-me de que frente à
residência do Prof. Jarbas havia uma bonita casa colonial, cujas janelas
permaneciam sempre abertas. Vendo um belo exemplar de mesa holandesa,
pé-de-lira, abeirei-me da dona da casa, comprei a mesa e trouxe-a para
São Paulo. O Dr. João Marino foi quem a adquiriu.
Comprei, ainda, alguns bancos “de orelha”, com babados na parte inferior, bem como duas magníficas mesas de encosto.
As
principais famílias possuíam copos e salvas de prata. As candeias de
azeite, latonadas, constituíam outro utensílio que por toda a parte se
encontrava.
No
século passado, havia na cidade um santeiro que fora eleito deputado
provincial. Mudou-se para a capital, mas, anos depois, desiludido da
política, voltou à (...) à antiga profissão: era o escultor Veiga
Vale. Visitando Meia Ponte, o bispo de Goiás, D. Ponce de León, frente à
casa do escultor “esbarrou” com um Menino Jesus. Impressionadíssimo,
ajoelhou-se diante da bela imagem; mais tarde, levou-a para o Vaticano.
Comprei
diversas imagens de Veiga Vale. Pode-se dizer que era um “especialista”
em Menino Jesus. Nas peanhas das imagens que confeccionava, existiam
sempre quatro “pompons” pendurados. As Madonas, de impecável face, são
muito bem cuidadas.
Obtive,
numa só rua, três mesas pé-de-lira. Uma delas, com losangos laterais
nas gavetas, está com o Dr. Júlio Kieffer. Outra, vendi-a ao meu
distinto amigo Dr. Linneu de Camargo Schutzer. A última está com a Sra.
D. Catarina, fabricante de abajures.
Travei
conhecimento com os irmãos Pompêo de Pina: Benedito e Wilson Braz,
aristocratas estimadíssimos na cidade. Ajudaram-me bastante. Em minha
ausência adquiriam, nas fazendas e na cidade, peças interessantes.
Outros
dois irmãos que me venderam muita coisa foram os Curado. Um, médico; o
outro negociante. Deste último obtive bela papeleira. Compraziam-se em
contar (...) do General Joaquim Xavier Curado, herói das lutas
do Prata e Ministro da Guerra de D. Pedro I. Não se esqueceram de contar
que o general, falecido no Rio, fora enterrado com suntuosas pompas e
grandes honras.
Fui
a Pirenópolis mais de dez vezes . Numa delas comprei um “monte” de
entalhes que estava depositado na sacristia da Matriz. O velho
comendador, que tomava conta de tudo, reuniu a “irmandade dos homens
pardos de nossa Senhora do Rosário” e, na reunião foi autorizada a
venda, evento registrado em ata. O tesoureiro da Irmandade recebeu o
pagamento e firmou recibo.
Instrui
um carpinteiro para que providenciasse madeira e executasse as
embalagens. Na hora da saída do caminhão, surgiu o prefeito municipal,
(que era da família Pina) e embargou a venda. Procurei o juiz da comarca
e este, examinando os documentos que tinha em mãos, disse-me que
garantiria a saída dos objetos através da polícia. Saí eufórico, mas a
alegria não durou, pois o vigário, informou-me que tanto o Prof. Jarbas
Jaime como os irmãos Curado eram frontalmente contrários ao negócio.
Preferi devolver as mercadorias e fui prontamente reembolsado. Os
Curado, fazendo jus à sua aristocrática origem, espontaneamente me
ressarciram das despesas feitas.
Há
vinte e poucos anos fui a Pirenópolis com a finalidade específica de
adquirir duas arcas de valores. Encontrei, no convento das freiras,
alguns entalhes da velha Igreja do Rosário, os mesmos que já comprara e
não pudera trazer.
A
mais bela de todas as imagens que pertencera àquela igreja, adquiriu-a o
Sr. Renzo Pagliari , em 1959. Nesta ocasião, adquiri do Prof. Jarbas
uma excelente cômoda “D. José”, que transferi ao Sr. Hélio de Almeida
Leite; hoje, esta peça decora o Palácio do Governo de São Paulo.
Assisti
diversas vezes às “Pastorinhas”, tradicional espetáculo de Pernambuco
transportado para os Pireneus. Vi também a famosa “Cavalhada”. Uma e
outra merecem elogios. Conhecida escultora especializou-se em reproduzir
tais “cavalhadas” em peças de barro.
Há
tantos anos que não vou a Pirenópolis... Que saudade da pensão do
Juanito Jaime... dos amigos que já se foram, do Benedito Pompêo de Pina,
do Prof. Jarbas, do velho amigo Benjamim Goulão, primo de Dom Aquino
Correia, de tantos outros..."
Fonte: NÓBREGA, José Claudino da. Memórias de um viajante antiquário. São Paulo: Raízes. 1984, p. 91-92.
Fonte: NÓBREGA, José Claudino da. Memórias de um viajante antiquário. São Paulo: Raízes. 1984, p. 91-92.
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Adriano Curado