sexta-feira, 14 de junho de 2013

Rosa Vermelha



     Naquela noite sem lua ou estrelas meu sono foi interrompido bruscamente pelo chiado lamurioso de um carro de bois. A princípio achei que fosse sonho, mas logo percebi que a realidade invadia meu quarto trazida por sons estranhos. E foi então que me levantei, abri o janelão e vislumbrei na penumbra os contornos dos bois e do carro. Lá no fundo da cena, a Matriz cochilava, e um princípio de aurora rabiscava um borrão de cores nas reentrâncias dos morros.

     O largo estava vazio, apenas o carro de bois e os dois homens que o conduziam se aventuravam no vento gelado àquela hora.

     E quando passava aqui pela frente de casa, vi uma moça vestida de camisolão branco, cabelos desalinhados, olhos arregalados que brilhavam à meia luz. Era Iracema, a bela filha do Arlindo, uma coitada que endoidou por conta de amor e era levada para um manicômio.

     Sorri para ela por pura compaixão. E ela olhou para mim até que o carro desaparecesse e continuou a olhar depois que voltei para a cama. Sua imagem não saía da minha mente. Era cochilar um pouquinho e via a doida sentada na beira da cama. Aqueles cabelos arrepiados, aqueles olhos esbugalhados, calada, quieta. Foi com alívio que vi o sol penetrar pelas frestas do telhado e pude finalmente sair de casa.


     Na rua não era outra a história. Todo mundo acrescentava um pouco mais no drama do carro de bois que passara por aqui de madrugada. Contaram que a filha fora desonrada e por isso Arlindo matara o moço. Só que a pobre endoidara ao saber da desgraça e por isso a decisão de interná-la no manicômio. Narraram que ela estava tão doida que pulara há alguns dias na garganta dum homem e quase o matara.

     E o pior é que a moça não chegou ao destino. Soube que saltou do carro e desapareceu mato adentro.

     No cair da noite, eu estava visivelmente impressionado. Seria difícil ferrar no sono. Mas depois de bastante chá de erva cidreira, consegui dormir. Sonhei sonhos agitados, neuróticos, um carro de bois gigante passava em cima da casa, da Matriz, da cidade toda.

     Acordei assustado, ofegante, tenso. Acendi o candeeiro para entornar a água da moringa num copo e subitamente lá estava ela – Iracema! Parada na porta do quarto, cabelo desmazelado, olhar de bicho acuado, o camisolão já todo rasgado e enodoado.

     Levei um susto tão grande que quebrei a moringa e gritei apavorado. Ela então se aproximou devagar, como se seus pés deslizassem pelo assoalho, e quando achei que me mataria num ato de possessão, abraçou-me e chorou.

      Ficou muito tempo assim.

     Eu nem me mexia de pavor, o coração aos saltos na garganta, joelhos trêmulos, entranhas em rebuliço. Quando cessou seu choro, ela olhou para mim. Mas agora seus olhos não eram feios nem amedrontadores, e pela primeira vez sorriu. Estendeu-me então uma rosa vermelha já seca e disse:

     ― Era pro meu amado que morreu, mas agora é sua, porque você, só você, sorriu para mim!

Adriano César Curado

Conto pertencente ao livro Alvorada na Serra, de Adriano César Curado, ainda no prelo.

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