terça-feira, 4 de junho de 2013

Dois dedos de prosa



     Este chão endurecido pelo pisar humano, terra de árvores centenárias guarnecedoras das lendas perdidas nas matas milenares, é povoado por gentes de costumes antigos, de tradições diversificadas, de crenças enraizadas na miscigenação promíscua ajuntada história adentro. E não faltam superstições, descabidas ou não, nem cantorias afinadas em festejos já tradicionais, nem hábitos que se cultiva mas ninguém sabe de onde vem.

       Vou contar como foi isso, em dois dedos de prosa.

     Quem saboreia uma feijoada, atualmente prato principal de sofisticados restaurantes, regressa pelo paladar aos séculos da escravidão no Brasil e é transportado aos confins de penumbra enfumaçada das senzalas. Sobras de nacos de carnes “pouco nobres”, pedaços “inferiores” de animais, descartes que não caberiam na cozinha da casa-grande, tudo isso misturado com feijão preto, era dado ao servo negro, que se fartava com tamanha delícia e talvez zombasse interiormente de seus senhores.

     Há menos de um século, homens e mulheres andavam nus pelas imediações das cidades ainda pequenas, e a população assustada chamava-os de “tapuias”. Tinham fama de furtar crianças para criá-las nas tribos decadentes, matar e comer criações dos quintais, sequestrar as moçoilas que iam à fonte com seus potes de barro, escaramuçar o roceiro dos ranchos socados no mato.

     Um bocadinho mais afastado no tempo, entretanto, esses nativos eram tribos guerreiras numerosas e ferozes, diabos sanguinários com invisibilidade nas matas e grande capacidade de mobilização e organização. Mas se não fosse seu paiol de milho ou sua carne de caça defumada nas fogueiras das ocas e saqueados pelo impávido herói bandeirante, as comitivas dos desbravadores teriam se perdido nos desvãos do infortúnio.

     E então fez-se a luz sobre a pepita de ouro que rolou montanha abaixo! Desse dia em diante, nunca mais a paz rebuçou este chão com seu manto de estrelas. Homens e mulheres, de todas as classes, de muitas idades, de tantas culturas, acorreram para cá e mancharam este chão de lágrimas, sangue e suor. Templos gigantescos, casarões assombrosos, ruas de pedras, tudo isso brotou neste chão goiano.

     Todas as raças que por aqui vagavam acorreram, naquela ocasião, para o largo central do arraial, cada qual no afã de acudir seus filhos, de garantir a perpetuação da própria espécie, e houve uma guerra em que todos morreram. 

     Mas graça ao Yamandu indígena, ribombar estrondoso do trovão, aos Orixás da velha África e ao Deus cultuado nos templos de taipa, ressuscitaram numa só raça, miscigenação de costumes, lendas, tradições, superstições e crenças.

     A raça do povo goiano.

Adriano César Curado

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