Essa
mania que Fernando tinha de sempre sair sozinho mato afora, sem dizer a
ninguém onde ia, era um perigoso meio de se expor ao desconhecido. E
não adiantava argumentar com ele. Seus colegas no trabalho, seus
familiares, os amigos, enfim, todo mundo já tinha avisado. Eles
desconversava, inventava mil desculpas e quando a prensa apertava,
jurava que só se aventuraria dali em diante acompanhado. Mas era chegar
um feriado emendado e lá ia o aventureiro nalguma nova aventura
solitária. Certo dia alguém indagou a ele o porquê de não gostar de
companhia nessas andanças e ele respondeu que o silêncio era o que mais
apreciava nesta vida, seu vinho de rótulo raro, o encontro com a
essência da alma.
Fato
é que, chegado o Carnaval, Fernando arrumou as tralhas na mochila e se
foi para uma mata escura e cerrada no Planalto Centro do Brasil. Como
era costume, ninguém soube onde. Acampou perto de um riacho e à noite
comeu uns enlatados que havia levado. Para segurança pessoal, porque por
aqui sempre há relatos de felinos imensos e ferozes, trazia consigo uma
pistola e uma caixa de balas. Dormia com a arma debaixo do travesseiro,
embora um amigo o alertara há pouco que, no caso de um ataque de onça,
por exemplo, ele não teria tempo sequer de empunhar a arma, quem dirá
atirar. Mas ele era cabeça dura, como já o dissemos.
A
estadia naquele lugar até que foi muito calma. Lugar de infinitas
belezas, curso d'água pequeno mas encorpado, solidão a perder de vista.
Não registrou nenhum movimento à noite e nem viu pegadas de grande porte
nas proximidades do acampamento. Só que Fernando era muito
desassossegado e amava a aventura, e foi então que decidiu se expor
mais, passar alguns sobressaltos, coisas do gênero. Então entrou no
coração da mata, lá onde o sol mal conseguia penetrar no seu auge e,
numa clareira apertada entre troncos centenários, esticou as cordas da
barraca.
E
tudo mudou a partir de então. Se era susto que procurava, veio ao lugar
certo. Logo ao cair da noite descobriu que os seres ameaçadores que não
iam ao local do primeiro acampamento, estavam todos reunidos ali na
vizinhança. Algo roçou no forro da barraca e esbarrou nas cordas de
sustentação, o que o fez se arrepender de imediato de estar ali. Ele
apontava a pistola para vários lados mas suas mãos trêmulas denunciavam
que provavelmente acertaria em si mesmo.
Já
no princípio da madrugada, quando cessaram os barulhos na folhagem ali
próximo, ele teve coragem, saiu da barraca, subiu numa árvore e
adormeceu num dos galhos. Dormiu então um sono tranquilo e sonhou com um
harém de lindas moças que dançavam nuas para ele e beijavam seu corpo
todo e sugavam seu pescoço e bochechas e braços e... Acordou
sobressaltado e coberto de sangue. Em seu corpo grudavam imensos
morcegos vampiros que há horas se alimentavam dele.
Tentou
desesperado espantar os animais e acabou por se desequilibrar e cair
sobre a barraca. Onde está a pistola? Meu Deus, quebrei minha perna! E
olha os morcegos que descem em sinuosa indecência pelo tronco, se
arrastam mansos entremeio as folhas secas no chão. E um já lambe o
sangue de sua perna, outro salta sobre seu pescoço. O farfalhar no
entorno se torna mais intenso e Fernando se dá conta de que à noite toda
ouviu foram os morcegos que certamente queriam assustá-lo e forçá-lo a
sair da barraca. Levanta-se a custo sem forçar a perna fraturada e é de
pé que vê uns mil animais nas árvores que o circundam. Todos querem seu
sangue. Procura ainda a pistola mas agora ela é inútil. Pega um galho e o
faz de muleta, salta o mais rápido que pode, tenta escapar daqueles
seres infernais. Só que Fernando está por demais fraco, perdeu sangue
numa constante hemorragia, e começa a ficar cada vez mais lento. Atrás
dele o tapete negro se move devagar, espera, não há pressa porque o sol
não nasce dentro deste mato. Alguns já sobem sem cerimônia em sua perna
boa, outros saltam sobre suas costas à procura do pescoço.
Fernando
cai combalido e logo é rebuçado pela coberta negra da morte. Tem tanto
animal sobre ele que não conseguiria mais levantar tamanho o peso.
Pequenas mas ágeis línguas se fartam com as hemorragias que são leitos
vermelhos de vida. A respiração está ofegante, a mente tonteia e a visão
embaça. Fernando sabe que vai morrer, então pensa na família, nos
amigos, e até em Faraó, seu cão de estimação. E é para homenagear Faraó
que saca suas últimas forças e arranca do bolso o apito com que sempre o
chama, leva à boca e assopra. Pronto! Como um passe de mágica, todos os
morcegos voam desesperados dali, ensurdecidos pelo apito de alta
frequência. E não voltaram mais, desapareceram. Fernando sorri e apaga.
Agora
está aqui internado no hospital e a cidade inteira faz campanha de
doação de sangue para ele. Uns caçadores o encontraram desmaiado. Já
tomou antirrábica, antitetânica e um sem-número de antibióticos. Não é
dessa vez que morrerá. Faraó não pôde vir porque é proibido entrar aqui,
pode transmitir algo para o dono. E de tudo isso, além da certeza de
nunca mais sair sozinho, Fernando soube que seu apelido agora é aventureiro sem noção.
Adriano Curado
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