terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Uma ladeira íngreme demais


Era por volta de meio-dia, sol a pino arregalado no céu azulado de junho e sons circunstanciais no entorno da igreja Matriz de Senhora do Rosário, quando uma cena forte fez parar Meia Ponte por algum tempo. A coisa se deu um pouco abaixo da casa onde João Basílio de Oliveira trabalhava poeticamente a arte de fotografar e um pouco arriba do extinto casarão onde os vovôs Jaime e Leocádia moravam.

Subia a ladeira uma carroça atulhada de areia molhada, quando o velho e magro cavalo não aguentou o peso. Ofegante, trêmulo, assustado, o animal tentava desesperado mover a carroça, mas suas rodas pareciam chumbadas nas pedras do pé de moleque. Enquanto isso, o chicote estalava, e ouviam-se gritos, urros, ameaças. Em vão. E o pior é que a carroça começava a descer de ré, embora seu proprietário se esforçasse com as duas mãos para contê-la. Também assustado, ele saltou para os lados, catou uma pedra e travou a roda. Neste exato instante, o cavalo desabou. Tremia bastante, como se sentisse frio, estava em choque.

Ao ver aquilo o carroceiro se desesperou, afinal, aquele era seu patrimônio. Então foi até a casa de Natércia de Siqueira buscar água e voltou esbaforido com um balde cheio que derramou aos poucos na cabeça do bicho. Desafivelou as correias, a carroça empinou e derramou toda a areia ladeira abaixo. Já livre das amarras, o cavalo começou a respirar melhor, embora ainda não reagisse a estímulo algum. É que o pobre animal, qual os escravos de outrora, trabalhava ininterruptamente desde antes de os primeiros raios solares acariciarem a rua Aurora. E sentia fome e sede o coitado. Era um animal já velho, seus músculos cansados não podiam com aquele esforço todo.

Eu fiquei ali parado, estarrecido, grudado ao muro da tal casa de João Basílio. Observava o povo que começou a juntar em volta da cena, palpiteiros de todos os calibres e tons de voz. Um policial apareceu e se ofereceu para sacrificar o bicho com um tiro de trinta e oito. O carroceiro dizia que não, que o cavalo estava acostumado a desmaiar assim, que logo ele se levantaria etc. e tal. Mentia, obviamente, para tentar amenizar seu prejuízo.

Não foi preciso o policial matar o cavalo, já que ele voltou do torpor e levantou a cabeça. O carroceiro desabou como se o chão houvesse sumido debaixo dos seus pés. Olhava para seu companheiro de labuta com os olhos umedecidos, como se só naquele instante se desse conta do laço afetivo que os unia. Comprara o animal ainda potro, labutavam juntos há muitos anos, mas só há pouco optara por vender areia do rio das Almas. Para sua infelicidade, a ladeira do Rosário era íngreme demais.

Trouxeram um bornal com milho debulhado e mais água fresca. O carroceiro só faltou tapar o sol com um guarda-chuvas. Correu um chapéu pelo ajuntamento de gente, já quase uma multidão, e não tardou para que notas dele transbordassem. Com aquele tratamento diferenciado que jamais experimentara na vida, em pouco tempo o cavalo se recuperou e foi embora sem puxar a carroça ou servir de montaria. 


Com o dinheiro arrecadado, comprou o carroceiro um outro animal mais jovem e bastante milho para seu velho serviçal. Quando o pelo alisou e a carne arredondou até sumir com os ossos da anca, vendeu-o para a charqueada.

Adriano Curado

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