
A semelhança com a obra seminal de Gilberto Freyre sobre a sociedade patriarcal brasileira a partir das relações e dos conflitos entre a casa-grande e a senzala, ou mesmo com os estudos sobre a casa paulista do professor Carlos Alberto Cerqueira Lemos, da Universidade de São Paulo (USP), não é mera coincidência (leia texto nesta página). Adriana, que é professora do curso de Arquitetura da Universidade Católica de Goiás, mirou-se nesses autores para compor não só a pesquisa do doutorado, como também a dissertação de mestrado que deu início às suas incursões pelo universo da moradia goiana.

Insularidade – Adriana revela que há uma complementaridade indiscutível entre a casa urbana e a casa rural goiana, pois as duas estão ligadas ao processo de estruturação da atividade agropecuária no estado, no século 19, e que permanece até hoje como a principal característica econômica da região.

“A dificuldade no recebimento de mercadorias levou pessoas a se organizarem para fornecer víveres àqueles que estavam em busca do ouro. E assim se formou, concomitantemente, uma estrutura urbana junto com uma estrutura de assentamento agropecuário ao redor das cidades”, constatou a pesquisadora.
Ela concentrou seu estudo nas manifestações arquitetônicas de Pirenópolis, uma cidade fundada por garimpeiros em 1727 (recebeu esse nome em 1890 por estar na Serra dos Pireneus), a 120 km de Goiânia, cujo patrimônio histórico foi tombado, e que desempenhou papel estratégico na ocupação do estado.

Espaço multifuncional – Segundo ela, um traço marcante das edificações interioranas, e que se acentua em Goiás, por causa de seu isolamento, é a sua multifuncionalidade. As casas rurais não eram apenas moradias, mas pequenas unidades produtivas, com anexos destinados à pecuária e suinocultura, ao cultivo de arroz e feijão, à torrefação de café, e à produção de farinha de milho e de mandioca, açúcar e rapadura, em que se processavam não só os alimentos para os moradores, mas os produtos agrícolas que eram comercializados na cidade.
A casa rural goiana, na concepção de Adriana, também se coloca na condição de fronteira por revelar a confluência de mundos diversos. Ela constata essa característica na arquitetura híbrida, composta por formas de construção importadas de outras regiões brasileiras, e manifestada, por exemplo, na edificação das paredes.

A tipologia das moradias permite ainda identificar o que Adriana chama de vernaculidade dos habitantes, ou seja, aquilo que é próprio ou peculiar no jeito de construir e de morar da região. Nas casas de Pirenópolis é comum a existência de guirlandas nas janelas e de bandeirolas de madeira nas portas, estilos arquitetônicos que não são encontrados em outras cidades goianas.
Diários reveladores – De acordo com Adriana, o estudo exigiu um extenso e minucioso trabalho de levantamento das fazendas, tarefa dificultada pela ausência de informações precisas sobre a localização dos imóveis. Mesmo assim, com a ajuda de moradores mais antigos e de informações obtidas em cartório e imobiliária, ela conseguiu elaborar o perfil de 33 propriedades rurais que julgou ainda possíveis de serem documentadas, pela representatividade e integridade, como a Fazenda Caiçara (leia texto nesta página).
Usou também relatos deixados por viajantes estrangeiros que passaram por Goiás no século 19, quase 200 inventários de pessoas que possuíam propriedades rurais e dois diários de mulheres que viveram na época. A documentação possibilitou a Adriana compor um painel riquíssimo de costumes e de hábitos dos moradores, revelando uma outra face do universo compreendido pela casa goiana: a de ser também um lugar de memória.
“Eu mostro como era o jeito característico do goiano ocupar a casa, de receber as visitas, de se movimentar pelos cômodos, de conviver com os membros da família, de trabalhar e até de realizar festas.”
Fontes de inspiração

“Desse patriarcalismo absorvente dos tempos coloniais a casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, cheia de salas, quartos, corredores, duas cozinhas de convento, despensa, capela, puxadas, parece-me expressão sincera e completa”, menciona ainda Freyre, que em sua vasta produção novamente enfocaria a casa como elemento representativo da sociedade patriarcal no Brasil em Sobrados e Mucambos.
Nesta obra, de 1936, ele aborda a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano a partir dos conflitos e conciliações entre o engenho e a praça, a casa e a rua, o pai e o filho, a mulher e o homem, o sobrado e o mucambo, e de outros aspectos das relações entre raça e classe.
Na fonte em que Adriana foi buscar inspiração para sua tese figura também o livro Casa Paulista: História das Moradias Anteriores ao Ecletismo Trazido pelo Café, de 1999. Nele, o arquiteto, artista plástico e professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Carlos Alberto Cerqueira Lemos, mostra como mudanças nas relações sociais foram alterando a organização das residências dos paulistas.
Preservando a história Exemplo da arquitetura rural goiana preservada é a Fazenda Caiçara, em Pirenópolis. Com 80 alqueires, foi criadora de gado e produtora de cachaça, rapadura, açúcar, arroz e milho. Mantém ainda como atividades produtivas a pecuária, o cultivo de arroz, cana, milho e a produção de rapadura. Construída no século 19, a fazenda desempenhou um papel significativo na região, e mantém até hoje uma venda de produtos diversos, para atender pequenos proprietários, empregados e agregados do lugar. Localizada em um fundo de vale, a edificação é emoldurada por árvores frutíferas, tendo a sua frente dominada por pastos de capim. A casa principal está assentada em declive, acompanhando o caimento natural do terreno, o que gerou pequenos desníveis no seu interior. O paiol e o depósito alinham-se a esta edificação, enquanto que os demais anexos ocorrem dispersos na sua parte posterior. O curral situa-se na frente e ao lado da edificação, possuindo divisões em pedra e em madeira. A casa tem volume retangular, de pouca altura, sem elementos de destaque, com aberturas de pequenas dimensões e de desenho convencional. O engenho e a rebaixa estão sob uma única cobertura, chamando a atenção por suas dimensões (331 metros quadrados). Os demais anexos espalham-se pelo pomar. O monjolo existente está situado num pátio cercado por muros de pedras e tijolos de argila, aberto para um cômodo fechado. Havia um outro monjolo ao ar livre, no pomar, que foi desativado, assim como o moinho de milho, descreve Adriana. |
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Adriano Curado