O transcorrer do tempo é
algo fascinante e assustador. Quando vivemos em uma cidade muito
antiga, como Pirenópolis, é possível notar mais claramente as
mudanças temporais.
Imagine como era
diferente o modo de vida dos meiapontenses quando por aqui os
garimpeiros ainda extraíam ouro. Pense que grupos de milhares de
escravos perambulavam seminus pelas ruas, o barulho dos chicotes no
ar, a gritaria dos feitores; chiavam as rodas dos carros de bois que
transportavam aroeiras para a construção dos casarões; o leito e o
barranco do rio eram revirados cada vez mais fundo à procura do
metal dourado. Os cativos tinham que laborar nas minas de sol a sol,
construir os casarões, os templos, os muros.
Descansavam no domingo da
labuta dos brancos, quando alguns tinham permissão para cuidar da
própria vida, como plantar a própria roça; outros eram autorizados
a trabalhar na edificação da Igreja dos Pretos, a vender
quinquilharias nas ruas de Meia Ponte etc. Mas a grande maioria
ficava mesmo trancafiada nas senzalas escuras e pouco arejadas,
acorrentados a troncos ou vigiados permanentemente.
Ainda na época da
mineração, poucas eram as mulheres brancas, e então os homens se
relacionavam com índias, mulatas e negras, o que criou a
miscigenação de nossa população. Casar na Igreja não era um
hábito muito difundido entre a população mineradora, vivia-se em
concubinato naturalmente naqueles distantes tempos do século
dezoito.
O declínio do ouro
coincidiu com o grande marasmo do século dezenove, quando o
movimento nas rotas comerciais diminuiu e a cidade ficou isolada. O
meiapontense aprendeu a viver numa sociedade voltada para si mesma,
cercada pelos paredões de morros, com raras notícias do litoral.
Poucos escravos restaram no lugarejo, a maioria na labuta doméstica.
Cada ente dessa já
reduzida população negra acabou por se tornar um membro da própria
casa. A ama de leite é exemplo disso. Nascia uma criança branca e a
mãe não tinha leite. Então mandavam buscar a escrava lactante e
ela alimentava o filho do seu senhor. Neste momento, como aconteceu
em muitas casas, criava-se um vínculo afetivo muito forte entre as
partes, e não é raro o caso em nossa cidade de pessoas que
cresceram com duas mães – a biológica e a de leite. Há relatos
em outras regiões brasileiras de amas alugadas ou que eram obrigadas
a renegar a própria cria, mas não encontrei isso por aqui.
Abolida a escravatura no
Brasil, caiu o Império e veio a República. Os negros desapareceram
misteriosamente da agora sociedade pirenopolina. O marasmo continuou
em Goiás. Poucas estradas, péssimas condições de infraestrutura,
politicagem de apadrinhamentos, e tudo isso contribuía para o atraso
da região.
Na contramão da
decadência geral da província de Goiás, Pirenópolis vivia uma
efervescência cultural muito forte. Aqui havia constantemente peças
teatrais, conjuntos musicais, bandas de música, cavalhadas,
escritores e pintores ativos, bibliotecas, matadouro público,
estalagens bem aparelhadas etc.
A sociedade ainda era fechada, patriarcal, preconceituosa. Mas isso mudaria radicalmente na segunda metade do século vinte, com a convivência cada vez maior entre nativos e turistas. E foi esse turismo que alterou os rumos de Pirenópolis, supervalorizou seus imóveis, fez tombar tabus, cindiu mortalmente o modelo de sociedade fechada e bairrista. Enfim, nasceu um outro pirenopolino.
O futuro de Pirenópolis
já começa a ser rascunhado no grande livro do tempo. Preocupações
ecológicas, ações efetivas de preservação patrimonial, o
reconhecimento do valor dos bens culturais imateriais e o
engajamento da juventude na vivência do folclore são alguns
exemplos de esperança no futuro.
Adriano Curado
Fonte:
Anuário Histórico,
Geographico e Descriptivo do Estado de Goyaz, de Francisco Ferreira
dos Santos Azevedo (org.). Brasília, SPHAN, 1987
CURADO, Glória Grace.
Pirenópolis: uma cidade para o turismo. Goiânia: Oriente. 1980.
GIACOMINI, Sônia Maria.
Mulher e escrava – Uma introdução histórica ao estuda da mulher
negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
GOMES, Modesto. Estudos
de História de Goiás. Goiânia: Gráfica do Livro Goiano. 1974.
JAYME, Irnaldo. Furacão
Histórico. Anápolis: Editora Cristã Evangélica. 1970.
JAYME, Jarbas. Esboço
Histórico de Pirenópolis. Goiânia: Imprensa da Universidade
Federal de Goiás, 1971.
MOURA Clóvis. Dicionário
da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.
ótimo texto! é bom saber mais sobre esta cidade encantadora q é pireópolis, e o texto tb nos faz refletir sobre o tempo e como as mudanças são sempre possíveis. abrçs
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