sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Máquina do Tempo


 
     Vamos fazer uma passeio diferente? Eu convido você, caríssimo leitor, a embarcar comigo nesta virtual máquina do tempo e juntos recuaremos quase 92 anos. Vamos juntos com o dr. Carlos Pereira de Magalhães, um advogado paulista que por aqui passou, conhecer como era Pirenópolis naquele tempo, saber mais de sua gente, dos costumes, da sociedade política, da mocidade etc.

     Seja bem vindo à bordo.

 
“Pirenópolis, 24 de novembro de 1919 – Estado de Goiás


      Chegando a esta cidade, avisou-me o major Siqueira que deveria aguardar a chegada do senhor Freimund. Que fora a Roncador. (…)

      O velho Cabo Pina, membro de uma rica família goiana, militar reformado e inspetor policial desta praça, levou-me à sua casa, no alto da Lapa, bairro populista. A seu lado, uma pequena chácara para alugar: a casa de telha, bem caiada, dois cômodos, pitorescamente situada entre bananeiras, aluguei-a por um ano, pelo preço de 25 mil réis. Nesse mesmo dia, transferi minha mudança para esta bucólica habitação. (…)

     Estou passando dias agradáveis em companhia do velho Cabo, que assentou praça em 1870, e familiarizando-me com o povo, em cujas veias corre generoso o sangue indígena. O governo federal mantém neste alto um posto meteorológico e na cidade uma estação de Telégrafo Nacional.

 
Região da Serra dos Pireneus
     Coqueiros-da-bahia sombreiam os quintais, viçosos vinhedos antigos ainda não aproveitados para a fabricação de vinho, cajus e toda sorte de frutas tropicais em profusão. Lindos pássaros frequentam esses enormes quintais defendidos por muros de pedras, como tucanos, joão-congo, graúnas e soldados, duas variedades de lindo gorjeio; as rolas fogo-apagou fazem os seus ninhos nos beirais dos velhos telhados. Cidade asseada, que o sol aquece com raios de luz brandos e coloridos, refletindo nas vidraças de mica e nas lajes de itacolomito do seu calçamento. O rio das Almas desliza silencioso sobre o leito de areias douradas, contorneando a cidade. Pirenópolis, antiga Meia Ponte, rodeada de montes, no sopé do Planalto Central, sentinela do norte bárbaro e inclemente, cujas tropas vêm na seca aqui se abastecer. O seu povo é tradicionalista, guarda porcelana do Reino, grandes relógios de parede, fardas e antigas espadas para as Cavalhadas, mas a época áurea exauriu-se em 1851, com o falecimento de Joaquim Alves. Esse grande homem residia em um magnífico sobrado e publicava um jornal, A Matutina Meiapontense. (…)

      O círculo cavalcante atual: o homem do mando, doutor Olavo Baptista, distinto clínico; coronel Félix Jayme, seu adversário; senhor Luís Augusto Curado, o fiel da balança; José Lourenço, o mesmo que me negou na capital apresentação ao presidente, por não ter roupa de casimira, é o homem da ronha política.

 
     Aos sábados, o círculo plebeu em redor da minha chácara matava um boi e distribuía o churrasco, e o restante era vendido no dia seguinte. Ao cair da tarde, rezavam um terço na casa do cortador Balduíno, homem valente e capaz. As meninas do povo ali se reuniam, acendendo no largo uma fogueira. Em torno das crepitantes chamas davam-se as mãos e cantavam velhas canções, obra-prima de tristeza, com voz límpida e argentina:

Pica-pau, lá do sertão
Não é como o daqui não
O de lá bate no pau
O daqui bate, bate, no coração

      Estribilho de uma melancólica endecha de tempos idos. Essas meninas ostentam com graça e modéstia, à luz vacilante da fogueira, os insolentes relevos de uma sadia nubilidade. Brilham em seus cabelos pirilampos alfinetados e no colo airoso colares de pérolas, isto é, de ovos de caramujo grande. Dançam com elegância e decência sob a severa fiscalização do cortador Balduíno, chefe desse quarteirão e responsável pelo que acontecer. Graciosa juventude de espírito alegre e coletivo, unidade e glória de um povo – o goiano, filho de São Paulo.


 
Casarão alugado pelo autor na Lapa
     O major exigiu fosse eu visitar a velha Fazenda do Abade no Planalto Central, abandonada há mais de 30 anos, expulso o seu proprietário, o engenheiro Arena, em 1886, hoje propriedade da viúva dona Maria Amblard de Arena. A Intendência de Pirenópolis tomou posse e a desfruta como sua.



     Parti na companhia de Balduíno, que ia em busca de uma rês para o churrasco do próximo sábado. Durante dois dias a percorremos, à noite dormimos no chão sobre os arreios, a mais de 1.300 metros acima do nível do mar. Às horas mortas, acordei, deslumbrado na contemplação do céu: pareceu-me uma revoada de andorinhas de luz, paralisadas no seu voo para o infinito... Senti a insignificância do nosso planeta e a mesquinharia das suas querelas. A limpidez e o oxigênio da grande altitude nos ofereciam aquele grandioso espetáculo. Pastagens, veredas, capões de mato fechados, cachoeiras de dar vertigem, lavras auríferas, eis o Abade, registrado com 101 quilômetros quadrados de superfície. (…)”

MAGALHÃES, Carlos Pereira de. Cartas de Goiás – No princípio do século XX. São Paulo: Editora De Letra em Letra. 2004, pgs. 143/146

Adriano César Curado

3 comentários:

  1. Ah!, que maravilha esse passeio pelo tempo, numa época romântica em que Pirenópolis não passava duma vila perdida nestes planaltos! Será que você não tem lugar para mais uma pasageira?!

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  2. Postagem importantíssima essa sua, escritor, que nos mostra o cotidiano duma cidade que, evidentemente, nada tem em comum com a Pirenópolis de hoje.

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  3. O sertanista Carlos Pereira de Magalhães comprou e morou muitos anos da sua vida na Fazenda Abade, que ele cita maravilhado no texto acima. O livro Cartas de Goiás é muito mais amplo e narra suas aventuras por diversos lugares de Goiás. Mas o interessante é que, mesmo depois de percorrer o estado todo, foi em Pirenópolis que ele escolheu viver.

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