Era outubro ou novembro, 1979. As massas das ruas, pelo Brasil afora, com o apoio da Anistia Internacional e cantando como se fosse um hino a canção O Bêbado e a Equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, imortalizada por Elis Regina, pedia mudanças. O presidente era o quinto dos generais que se revezaram no “comando” durante os 21 anos do regime de exceção. E a Anistia chegou!
Chegou a Anistia e, logo após, um a um, os anistiados! Todos os dias, bandos de bons repórteres revezavam-se no saguão do aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, para receber os exilados e os clandestinos que retornavam à cidade. O Papa João Paulo II beijava o solo dos países visitados tão-logo desembarcava – alguns dos anistiados repetiam o gesto, mas todos se emocionavam e emocionavam-nos ao desembarcar. Sentíamos que o Brasil começava a mudar, e mudou!
O semanário Cinco de Março era a minha casa, na avenida 24 de Outubro, no bairro de Campinas (o berço de Goiânia). As idas ao aeroporto eram o momento de fazer fotos dos recém-chegados e também de marcar entrevistas – luxo típico dos semanários, já que os jornais diários têm pressa, a matéria “tem que sair amanhã”, e nós podíamos processar devagar qualquer tema.
Meu parente Jesus de Aquino Jaime, escritor virtuoso em prosa e poesia, ligou-me e disse: “Luiz, meu irmão Joaquim está chegando, quero que você o entreviste”. Contei ao Batista Custódio, que gostou da novidade – nós, do CM, éramos, sem dúvida, os que tratávamos melhor as entrevistas com nossos conterrâneos de regresso. Lembro-me bem daquela manhã, Joaquim e Jesus comigo, e eu escarafunchando a vida do parente ilustre! Joaquim Jayme é um dos três...
Bem: seu avô era Joaquim Tomás de Aquino, clarinetista na Banda Fênix, em Pirenópolis, lá pela virada do Século XIX. Três dos netos do pirenopolino Quim Tomás ganharam o nome do avô – Joaquim Tomás Lopes, Joaquim Tomás de Aquino Lopes e Joaquim Tomás Jayme (os dois primeiros faleceram antes do esperado). Em todos notei o orgulho de ostentarem o nome do avô – fato de que também me orgulho, pois aqueles antigos Aquino deixaram-nos, sim, belos exemplos.
O parente maestro sofreu o primeiro expurgo ao ter que deixar Goiânia – e daqui foi para Campinas (SP), onde atuou como professor universitário e deixou marcas. De lá, teve de deixar o país e exilou-se no Chile, como vários outros brasileiros. Mas em 1973 o golpe de Pinochet mostrou-se ainda mais sangrento que o havido no Brasil, nove anos antes. E o maestro Joaquim Jayme se foi para a Alemanha.
Voltando, ele atuou na Orquestra Sinfônica de Goiás, sendo um de seus maestros fundadores (ao lado de outro maestro pirenopolino, Brás Wilson Pompeu de Pina Júnior). Idas e vindas na história de música erudita em Goiás fizeram com que Joaquim Jayme fincasse pé na Secretaria de Cultura da cidade de Goiânia, sendo o maestro regente da Sinfônica de Goiânia, sempre.
Há alguns meses sofreu um AVC e está internado, em tratamento, no CRER, o nosso hospital de recuperação. Seu olhar pareceu-me o único meio de ligação com o mundo exterior, e nos passa duas sensações – ele está lúcido e triste.
Incomodou-me profundamente o sentimento que me impediu de ficar mais alguns minutos ao seu lado. Naquele olhar triste, acho eu, senti por ele. Senti que vivemos uma sociedade mal-educada, ingrata, indiferente. O homem que há tantas décadas ensinou Música e elevou bem-estar de multidões, enriqueceu corações e deu à capital de Goiás a excelsa condição de ter a sua orquestra sofre o menosprezo desse nosso povo.
Aliás, o povo e tudo o mais! O DM cuidou de produzir matéria jornalística (de Hélmiton Prateado), no afã de avaliar reações. Debalde (diria um velho mestre dos meus tempos ginasiais). Nem mesmo o meio literário, o das artes plásticas e, sobretudo, o da música se mexeu. Leda Selma, poetisa e presidente da Academia Goiana de Letras, pediu-me – “Luiz, você que é parente, visite-o em nome da Academia”.
Indigna-me tal indiferença! Fosse ele um deputado Eduardo Cunha ou um senador Renan, um batalhão de áulicos estaria pelos corredores do hospital na tentativa de aparecer como papagaio-de-pirata em fotos de jornais ou vídeos da tevê. Fosse ele um cantador sem estudo e sem domínio da Língua e da Teoria Musical, até vice-presidente da República estaria aqui (ah, essa figura não há mais! Menos mal...).
Ministros da Cultura e da Educação deveriam pedir notícias dele. Entidades como o Sindicato e a Ordem dos Músicos certamente não sabem notícias dele, caso alguém de longe ligasse para se informar. E o maestro mais ativo dentre os tantos contemporâneos – no que toca a representar Goiás – já está esquecido por sua gente.
Contudo, e para minha alegria, para gáudio deste poeta das mesmas raízes – telúricas e genealógicas – senti naquele olhar triste e silente uma qualidade que sempre o marcou: Joaquim Jayme mantém, contudo, a altivez do artista que teve a coragem de insurgir-se contra a ditadura, aceitou com bravura e determinação o exílio, retornou à terra trazendo mais conhecimento ainda e não se dobrou aos poderes.
Muito menos aos ingratos.
Chegou a Anistia e, logo após, um a um, os anistiados! Todos os dias, bandos de bons repórteres revezavam-se no saguão do aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, para receber os exilados e os clandestinos que retornavam à cidade. O Papa João Paulo II beijava o solo dos países visitados tão-logo desembarcava – alguns dos anistiados repetiam o gesto, mas todos se emocionavam e emocionavam-nos ao desembarcar. Sentíamos que o Brasil começava a mudar, e mudou!
O semanário Cinco de Março era a minha casa, na avenida 24 de Outubro, no bairro de Campinas (o berço de Goiânia). As idas ao aeroporto eram o momento de fazer fotos dos recém-chegados e também de marcar entrevistas – luxo típico dos semanários, já que os jornais diários têm pressa, a matéria “tem que sair amanhã”, e nós podíamos processar devagar qualquer tema.
Meu parente Jesus de Aquino Jaime, escritor virtuoso em prosa e poesia, ligou-me e disse: “Luiz, meu irmão Joaquim está chegando, quero que você o entreviste”. Contei ao Batista Custódio, que gostou da novidade – nós, do CM, éramos, sem dúvida, os que tratávamos melhor as entrevistas com nossos conterrâneos de regresso. Lembro-me bem daquela manhã, Joaquim e Jesus comigo, e eu escarafunchando a vida do parente ilustre! Joaquim Jayme é um dos três...
Bem: seu avô era Joaquim Tomás de Aquino, clarinetista na Banda Fênix, em Pirenópolis, lá pela virada do Século XIX. Três dos netos do pirenopolino Quim Tomás ganharam o nome do avô – Joaquim Tomás Lopes, Joaquim Tomás de Aquino Lopes e Joaquim Tomás Jayme (os dois primeiros faleceram antes do esperado). Em todos notei o orgulho de ostentarem o nome do avô – fato de que também me orgulho, pois aqueles antigos Aquino deixaram-nos, sim, belos exemplos.
O parente maestro sofreu o primeiro expurgo ao ter que deixar Goiânia – e daqui foi para Campinas (SP), onde atuou como professor universitário e deixou marcas. De lá, teve de deixar o país e exilou-se no Chile, como vários outros brasileiros. Mas em 1973 o golpe de Pinochet mostrou-se ainda mais sangrento que o havido no Brasil, nove anos antes. E o maestro Joaquim Jayme se foi para a Alemanha.
Voltando, ele atuou na Orquestra Sinfônica de Goiás, sendo um de seus maestros fundadores (ao lado de outro maestro pirenopolino, Brás Wilson Pompeu de Pina Júnior). Idas e vindas na história de música erudita em Goiás fizeram com que Joaquim Jayme fincasse pé na Secretaria de Cultura da cidade de Goiânia, sendo o maestro regente da Sinfônica de Goiânia, sempre.
Há alguns meses sofreu um AVC e está internado, em tratamento, no CRER, o nosso hospital de recuperação. Seu olhar pareceu-me o único meio de ligação com o mundo exterior, e nos passa duas sensações – ele está lúcido e triste.
Incomodou-me profundamente o sentimento que me impediu de ficar mais alguns minutos ao seu lado. Naquele olhar triste, acho eu, senti por ele. Senti que vivemos uma sociedade mal-educada, ingrata, indiferente. O homem que há tantas décadas ensinou Música e elevou bem-estar de multidões, enriqueceu corações e deu à capital de Goiás a excelsa condição de ter a sua orquestra sofre o menosprezo desse nosso povo.
Aliás, o povo e tudo o mais! O DM cuidou de produzir matéria jornalística (de Hélmiton Prateado), no afã de avaliar reações. Debalde (diria um velho mestre dos meus tempos ginasiais). Nem mesmo o meio literário, o das artes plásticas e, sobretudo, o da música se mexeu. Leda Selma, poetisa e presidente da Academia Goiana de Letras, pediu-me – “Luiz, você que é parente, visite-o em nome da Academia”.
Indigna-me tal indiferença! Fosse ele um deputado Eduardo Cunha ou um senador Renan, um batalhão de áulicos estaria pelos corredores do hospital na tentativa de aparecer como papagaio-de-pirata em fotos de jornais ou vídeos da tevê. Fosse ele um cantador sem estudo e sem domínio da Língua e da Teoria Musical, até vice-presidente da República estaria aqui (ah, essa figura não há mais! Menos mal...).
Ministros da Cultura e da Educação deveriam pedir notícias dele. Entidades como o Sindicato e a Ordem dos Músicos certamente não sabem notícias dele, caso alguém de longe ligasse para se informar. E o maestro mais ativo dentre os tantos contemporâneos – no que toca a representar Goiás – já está esquecido por sua gente.
Contudo, e para minha alegria, para gáudio deste poeta das mesmas raízes – telúricas e genealógicas – senti naquele olhar triste e silente uma qualidade que sempre o marcou: Joaquim Jayme mantém, contudo, a altivez do artista que teve a coragem de insurgir-se contra a ditadura, aceitou com bravura e determinação o exílio, retornou à terra trazendo mais conhecimento ainda e não se dobrou aos poderes.
Muito menos aos ingratos.
Crônica de Luiz de Aquino Alves Neto publicada no Diário da Manhã do dia 26/04/17, Caderno Opinião Pública, p. 1.
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Adriano Curado