Tainá-racan
tinha os olhos cor de noite estrelada. Seus cabelos desciam pelas
espáduas como um tufo de seda negra e luzidia. O andar era elegante,
cadenciado como o de uma deusa passeando, flor entre flores, no seio
da mata. Maluá botou os olhos em Tainá-racan e o coração saltou,
louco e fogoso, no peito do jovem e formoso guerreiro. "Ela é
mesmo linda como a estrela da manhã. Quero-a para minha esposa. Hei
de amá-la enquanto durar a minha vida!"
Doce foi
o encontro e, juntos e casados, a vida dos dois era bela e alegre com
o ipê florido. De madrugada, Maulá saía para a caça e para a
pesca, enquanto a esposa tecia os colares, as esteiras, moqueava o
peixe, preparando o calugi para ofertar ao amado, quando ele chegasse
com o cesto às costas, carregado de peixe e frutas, as mais viçosas,
para oferecer-lhe.
O tempo foi passando, passando. No enlevo do amor, eles não perceberam quantas vezes a lua viajou pela arcada azul do céu, quantas vezes o sol veio e se escondeu na sua casa do horizonte. Floriram os ipês.
Caíram
as flores. Amareleceram as folhas, que o vento levava em loucas
revoadas pelos campos. Os vermelhos cajus arcavam de fartura e beleza
os galhos dos cajueiros. As castanhas escondiam-se no seio da terra
boa. Rebentavam-se em brotos, e novos cajueiros despontavam. As
cigarras enchiam as matas com sua forte sinfonia e sua vida
evolava-se, aos poucos, em cada nota de seu canto. Nascimentos,
mortes, transformações, e os dias andando, andando.
Após
três anos de casamento, numa noite bonita, em que o rio era um calmo
dorso de prata à luz do luar e os bichos noturnos cantavam fundas
tristezas e medos, Maluá encostou a cabeça no peito de Tainá-racan
e apertou-a com ternura.
No olhar
de ambos, há muito, havia uma sombra. Nenhum deles tinha a coragem
de falar. Uma palavra de mágoa, temiam, poderia quebrar o encanto de
seu amor. A beleza da noite estremecia o coração sensível de
Tainá-racan. Ela ajuntou a alma dos lábios e perguntou com voz
trêmula, em sussurro:
― Estás
triste, amado meu? Nem é preciso que respondas. Há tempo vejo uma
sombra nos teus olhos.
― Sim,
respondeu o valente guerreiro. Tu sabes que eu estou triste e tu
também estás. A dor é a mesma.
― Onde
está nosso filho que Cananxiué não quer mandar?
― Sim,
onde está nosso filho?...
Maluá
alisou com carinho o ventre da formosa esposa. "E o nosso filho
não vem", murmurou. Dois pequeninos rios de lágrimas
deslizaram pelas faces coradas de Tainá-racan. Um vento forte
perpassou pela floresta. Uma nuvem escura cobriu a lua, que não mais
tornava de prata as águas mansas do rio. Trovões reboaram ao longe.
Maluá envolveu Tainá-racan nos braços e amou-a. "Nosso filho
virá, sim. Cananxiué nos mandará".
Quando os
ipês voltaram a florir, no ano seguinte, numa madrugada alegre,
nasceu Uadi, o Arco-Íris. Era lindo, gordinho, tinha os olhos cor de
noite estrelada como os da mãe e era forte como o pai. Mas havia
nele algo diferente, algo que espantou o pai, a mãe, a tribo
inteira: Uadi tinha os cabelos dourados como as flores do ipê. Maluá
recebeu o nascimento do filho como um presente de Cananxiué.
Seu
coração, contudo, estremeceu com a singularidade dele. Começou a
espalhar pela tribo a lenda de que o menino era filho de Cananxiué.
O menino crescia cheio de encanto, alegria e de uma inteligência
incomum. Fascinava a mãe, o pai, a aldeia, a tribo toda. Com rapidez
incrível aprendeu o nome das coisas e dos bichos. Sabia cantar as
baladas tristes e alegres que a mãe ensinava. Era a alegria e a
festa da mãe, do pai, da tribo.
Um dia,
Maluá, com outros guerreiros, foi chamado para a luta. Os olhos
pretos de Tainá-racan encheram-se de lágrimas. O rostinho vivo de
Uadi se ensombreceu. À despedida, seus bracinhos agarram-se ao
pescoço do pai e ele falou:
―
Papai, vou-me embora para a noite, depois, chegarei à casa de
Tainá-racan, a mãe, lá no céu.
E seu
dedinho róseo apontou o horizonte. O corpo de bronze do guerreiro se
estremeceu. Seus lábios moveram-se, mas as palavras teimavam em não
sair. Ele apertou, com força, o menino nos braços e, por fim,
falou:
― Que é
isso, filhinho, tu não vais para lugar nenhum, nenhum deus te
arrancará de mim. A tua casa é a casa de tua mãe, Tainá-racan,
aqui na terra, e a de seu pai. Se for preciso, não partirei para a
guerra. Ficarei contigo.
Nesse
momento, Cananxuié, o senhor de todas as matas, de todos os animais,
de todos os montes, de todos os valores, de todas as águas e de
todas as flores, desceu do céu sob a forma de Andrerura, a arara
vermelha, e gritou um grito forte:
― Vim
buscar meu filho! ―
Agarrou-o e levou-o pelos ares.
Tainá-racan
e Maluá caíram de joelhos. O guerreiro abriu os braços gritando:
― O
filho é nosso, sua casa é a de sua mãe, Tainá-racan, aqui na
terra! Devolve meu filho, Cananxiué!
O grito
de Maluá ecoou pela mata, ferindo de dor o silêncio. O peito do
guerreiro palpitava de sofrimento como uma montanha ferida pelo
terremoto. O velho chefe guerreiro aproximou-se dele, bateu-lhe no
ombro e bradou:
― Teus
companheiros já partem. Maior que tua dor é tua honra de guerreiro
e a glória de nossa tribo! Vai, meu filho, Cananxiué buscou o que é
dele. Muitos outros filhos ele te dará. Tainá-racan é jovem. Tu és
jovem. Vai, guerreiro, não deixa a dor matar sua coragem!
Maluá partiu. Tainá-racan encostou a fronte na terra, onde pouco antes pisavam os pezinhos encantados de Uadi. Chorou. Chorou. Chorou três dias e três noites.
Então,
Cananxiué se apiedou dela. Baixou a terra e disse:
― Das
tuas lágrimas nascerá uma planta que se transformará numa árvore
copada. Ela dará flores cheirosas que os veados, as capivaras e os
lobos virão comer nas noites de luar. Depois, nascerão frutos.
Dentro da casca verde, os frutos serão dourados como os cabelos de
Uadi. Mas a semente será cheia de espinhos, como os espinhos da dor
de teu coração de mãe. Seu aroma será tão tentador e
inesquecível que aquele que provar do fruto e gostar, ama-lo-á para
jamais o esquecer. Como também amará a terra que o produziu. Todos
os anos, encherei, generosamente, sua copa de frutos, que os galhos
se curvarão com a fartura. Ele se espalhará pelos campos, irá para
a mesa dos pobres e dos ricos Quem estiver longe e não puder comê-lo
sentirá uma saudade doida de seu aroma. Nenhum sabor o substituirá.
Ele há de dourar todos os alimentos com que se misturar e, na mesa
em que estiver, seu odor predominará sobre todos. Ele há de dourar
também os licores, para a alegria da alma.
Tainá-racan
ergueu o olhar, aquele olhar onde brilhou a primeira estrela da
consolação. E perguntou ao deus:
― Como
se chamará, Cananxiué, esse fruto cujo coração são os espinhos
de minha dor, cuja cor são os cabelos de ouro de Uadi e cujo aroma é
inesquecível como o cheiro dessa mata, onde brinquei com meu
filhinho?
― Chamar-se-á Tamauó, pequi, minha filha. Quero ver-te alegre de novo, pois te darei muitos filhos, fortes e sadios como Maluá. E teu marido voltará cheio de glória da batalha, pois muitos séculos se passarão até que nasça um guerreiro tão destemido e tão honrado! Ele comerá deste fruto e gostará dele por toda a vida!
Tainá-racan sorriu. E o pequizeiro começou a brotar.
Marieta Teles Machado
Marieta
Teles Machado nasceu em Hidrolândia e faleceu em Goiânia. Foi
prosadora e teatróloga de renome em Goiás e no Brasil. Destacou-se,
também, pelo pioneirismo no ramo da Biblioteconomia em Goiás.
Deixou entre outros, os livros As doze voltas da noite, Os frutos
dourados do pequizeiro, Santo Antonio das Grimpas e O burrinho do
presépio.
Obs.: o presente texto foi-nos enviado pelo primo Bento Fleury Curado
* * *
Amei! Li a lenda do açaí. Então, pesquisei a lenda do pequi. Estou encantada!
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