quarta-feira, 25 de julho de 2018

O papiloscopista medroso


Tem certas profissões que não combinam com algumas pessoas. E no caso de Wagner, não foi por falta de avisar. Desde criança ele sempre se mostrou muito nervoso e assombrado. Diziam seus pais que ele acordava com gritos pavorosos por conta dos sonhos que tinha.

Mas, enfim...!

Wagner, depois de muito estudar, conseguiu ser aprovado num concurso para papiloscopista da polícia técnico-científica. Uma grande conquista a estabilidade na carreira pública e o fim de longas maratonas como concurseiro. Só tinha um porém: ele continuava apavorado!

Depois de estágios tenebrosos, todos com supervisores, em que tinha que ir até cenas de crime, olhar para corpos desfigurados e tentar extrair deles as digitais, já havia chegado ao consenso de que aquilo não era para ele. Até comentou com alguns amigos sobre a questão e todos o aconselharam a voltar aos estudos e tentar uma nova profissão.

Nesse meio tempo, heis que surge a primeira missão em que Wagner teria que atuar sozinho. E não era lá algo tão complicado. Ele teria apenas que colher as digitais de um cadáver no instituto médico legal. Seu superior achava que ele estava apto para a tarefa e o escalou.

Apresentou-se no necrotério para a perícia. Supersticioso, medroso, alarmado, entrou sozinho na sala gelada onde um corpo estava estendido sobre a maca. Um lençol branco o cobria, e no rosto havia uma mancha de sangue em vermelho vivo. Devia estar desfigurado, pensou. Colocou então a maleta de apetrechos no chão, enquanto olhava para o buraco, onde normalmente haveria nariz e testa, que fazia o lençol empoçar sangue coagulado. O coração parecia um animal vivo que queria saltar-lhe boca afora. 

Wagner preparou o material, calçou as luvas e devagar encostou no defunto. Sentiu que estava rijo e gelado. Onde estariam suas mãos? Queria fazer o trabalho sem ter que retirar o lençol para não ver a provável cara medonha do infeliz. E assim começou a tatear o corpo. Estava de joelhos, olhos postos no chão, respiração ofegante. E tanto tremeu que acabou por dar um esbarrão na maca e o corpo caiu sobre ele e os dois ficaram ali naquela peleja sem fim. Quanto mais tentava se desvencilhar mais se enroscava no lençol. Descobriu o cadáver, encostou na ferida da sua cara, recebeu um beijo repugnante... 

- Chega! - gritou no necrotério. - Vá pra égua que o pariu, desgraçado. 

Descalçou as luvas, limpou o sangue no rosto, catou as mãos do falecido e coletou as digitais. Estendido no chão com os olhos arregalados, o defunto parecia incrédulo de que o outro tivesse perdido o medo.

Quando saiu para o corredor, topou com o povo que ouviu o xingamento e veio em correria acudir.

- Que houve, doutor?
- O miserável tentou me agarrar mas já terminei o serviço.

Enquanto Wagner se distanciava e assobiava, os demais olhavam ao mesmo tempo para o corpo que continuava estendido na maca e coberto com o lençol.

Adriano Curado

Um comentário:

  1. Credo Adriano! Que história tenebrosa. Acho que vou sonhar com isso.

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