quarta-feira, 1 de abril de 2015

A Sociedade - de Meia Ponte a Pirenópolis

O transcorrer do tempo é algo fascinante e assustador. Quando vivemos em uma cidade muito antiga, como Pirenópolis, é possível notar mais claramente as mudanças temporais.

Imagine como era diferente o modo de vida dos meiapontenses quando por aqui os garimpeiros ainda extraíam ouro. Pense que grupos de milhares de escravos perambulavam seminus pelas ruas, o barulho dos chicotes no ar, a gritaria dos feitores; chiavam as rodas dos carros de bois que transportavam aroeiras para a construção dos casarões; o leito e o barranco do rio eram revirados cada vez mais fundo à procura do metal dourado. Os cativos tinham que laborar nas minas de sol a sol, construir os casarões, os templos, os muros.

Descansavam no domingo da labuta dos brancos, quando alguns tinham permissão para cuidar da própria vida, como plantar a própria roça; outros eram autorizados a trabalhar na edificação da Igreja dos Pretos, a vender quinquilharias nas ruas de Meia Ponte etc. Mas a grande maioria ficava mesmo trancafiada nas senzalas escuras e pouco arejadas, acorrentados a troncos ou vigiados permanentemente.

Ainda na época da mineração, poucas eram as mulheres brancas, e então os homens se relacionavam com índias, mulatas e negras, o que criou a miscigenação de nossa população. Casar na Igreja não era um hábito muito difundido entre a população mineradora, vivia-se em concubinato naturalmente naqueles distantes tempos do século dezoito.

O declínio do ouro coincidiu com o grande marasmo do século dezenove, quando o movimento nas rotas comerciais diminuiu e a cidade ficou isolada. O meiapontense aprendeu a viver numa sociedade voltada para si mesma, cercada pelos paredões de morros, com raras notícias do litoral. Poucos escravos restaram no lugarejo, a maioria na labuta doméstica.

Cada ente dessa já reduzida população negra acabou por se tornar um membro da própria casa. A ama de leite é exemplo disso. Nascia uma criança branca e a mãe não tinha leite. Então mandavam buscar a escrava lactante e ela alimentava o filho do seu senhor. Neste momento, como aconteceu em muitas casas, criava-se um vínculo afetivo muito forte entre as partes, e não é raro o caso em nossa cidade de pessoas que cresceram com duas mães – a biológica e a de leite. Há relatos em outras regiões brasileiras de amas alugadas ou que eram obrigadas a renegar a própria cria, mas não encontrei isso por aqui.

Abolida a escravatura no Brasil, caiu o Império e veio a República. Os negros desapareceram misteriosamente da agora sociedade pirenopolina. O marasmo continuou em Goiás. Poucas estradas, péssimas condições de infraestrutura, politicagem de apadrinhamentos, e tudo isso contribuía para o atraso da região.

Na contramão da decadência geral da província de Goiás, Pirenópolis vivia uma efervescência cultural muito forte. Aqui havia constantemente peças teatrais, conjuntos musicais, bandas de música, cavalhadas, escritores e pintores ativos, bibliotecas, matadouro público, estalagens bem aparelhadas etc.

A sociedade ainda era fechada, patriarcal, preconceituosa. Mas isso mudaria radicalmente na segunda metade do século vinte, com a convivência cada vez maior entre nativos e turistas. E foi esse turismo que alterou os rumos de Pirenópolis, supervalorizou seus imóveis, fez tombar tabus, cindiu mortalmente o modelo de sociedade fechada e bairrista. Enfim, nasceu um outro pirenopolino.

O futuro de Pirenópolis já começa a ser rascunhado no grande livro do tempo. Preocupações ecológicas, ações efetivas de preservação patrimonial, o reconhecimento do valor dos bens culturais imateriais e o engajamento da juventude na vivência do folclore são alguns exemplos de esperança no futuro.

                                                                 Adriano Curado


Fonte:
Anuário Histórico, Geographico e Descriptivo do Estado de Goyaz, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (org.). Brasília, SPHAN, 1987
CURADO, Glória Grace. Pirenópolis: uma cidade para o turismo. Goiânia: Oriente. 1980.
GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e escrava – Uma introdução histórica ao estuda da mulher negra no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
GOMES, Modesto. Estudos de História de Goiás. Goiânia: Gráfica do Livro Goiano. 1974.
JAYME, Irnaldo. Furacão Histórico. Anápolis: Editora Cristã Evangélica. 1970.
JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: Imprensa da Universidade Federal de Goiás, 1971.
MOURA Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

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